Oitenta flechas para atrair a cotovia/ Livro 1 – António Cabrita

CARTA EM MESA PÉ-DE-GALO

                                           para o José Colaço Barreiros

 

Fiquei enfim, querido Pasolini, saturado

    daquele mundo antigo, das balelas

          de espíritos caducos como as rameiras

do Império Romano. Foi do que me salvei

dum expediente que me amolava o espírito

         e o declinava em pára-raios,

            repetindo sem dúvidas velhas

formalidades, predominações (sabes como

      é proibitivo falar em classes) que sobrepunham

         razões e deuses alheios ao meu ânimo

secreto, intempestivo. Voltei ao barro,

      ao descompasso clandestino, a uma respiração

           atreita aos ziguezagues de cada dia,

 o que me alarga os horizontes e me não confina

     em moldes. E às vezes uma força eruptiva

         salta aos olhos, provinda do plinto do inesperado

onde, di-lo Heraclito, conflui a espera.

 

 Ainda ontem tentava explicar a dois esquálidos suíços,

           amedrontados pela pobreza em África

— this is the middle age, the middle age…—

     que a vida deles sem esse testemunho

           seria um mero palanque declamatório

e que o martelar nas íris das lancinantes gaiolas

       da miséria, os melhoraria como seres humanos

             implodindo-lhes os belos corais da letargia?

Mas arrancar suíços à previsão dos mecanismos,

     à sua comedida, meridiana torpeza? Mostrei-lhe

           o matutino, onde se lia: «Em Neuchâtel, suíço

rapta crianças de dois anos para as devorar».

      The real return of the middle age, repliquei.

           Não acreditaram, e coléricos pretendiam

                ter sido a notícia inventada por um jornalista de mal

 escarificado na alma. Peut-être. No circo romano,

       a barbaridade espirra pedras pelos olhos.

            Porém, crer que o Bem é simétrico ao progresso

           das nações é uma ingenuidade que decapita mitos.

E voltaram ao hotel, de olhos fixos no negrume das peles

     temendo encontrar pelo caminho trupe de canibais.

 

Como explicar a espíritos tão arreigados

    ao decoro, aos impostos, que há uma poética do sujo,

         que a vizinha circunvalação do trágico levanta

 

dos escombros as magnólias, o prazer que unge

 

      numa pequena conquista, e que o urbanismo,

 

             o vero, é cosa mentale? Necessitariam

 

                   os filhos do conforto, escoltados

pela gadanha da História, de ter nascido nas faldas

      de Friul, como tu ou de escorpiões pontapeados

por pastores, como eu, para descortinarem

que por detrás dum sobressaltado

      e férreo desajuste do destino cada vida impõe

           uma feraz alegria que a resgata,

aos alicates da estatística. Tinha comprado um honesto

vinhito sul-africano para partilhar com eles —

        mais fica. Deixemos os juízos aos janotas,

tique-taque, tique-taque, tique-taque, e

sozinho deglutirei as lágrimas de riso de Lázaro.

 

Douda Correria#82

Oitenta flechas para atrair a cotovia/ Livro 1 – António Cabrita

(fotografia de capa de Madalena Ávila/ composição de Joana Pires)

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Imprensa/ Blog´s

Blog Antologia do Esquecimento | por Henrique Manuel Bento Fialho | O MELHOR DOS LIVROS EM 2018 | 05.01.2019:

http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2019/01/o-melhor-dos-livros-em-2018.html

 

Blog Antologia do Esquecimento | por Henrique Manuel Bento Fialho | 28.06.2018:

https://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2018/06/oitenta-flechas-para-atrair-cotovia.html

 

 

Lançamento: 05.06.2018 | 19h | Irreal

Conversa com António Cabrita e Livro 1.

https://www.facebook.com/events/149320849256039/

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Fotografias: Madalena Ávila

 

 

António Cabrita nasceu em Almada, 1959. Vive actualmente em Maputo, foi jornalista e crítico durante vinte e cinco anos, dezasseis no Semanário Expresso. Autor, dentre outros livros, de Éter, contos, Abysmo, 2015, que neste momento está a sair no Brasil, numa co-edição Azouge/Circuito, do rio de Janeiro; A Maldição de Ondina, romance, Abysmo, 2013, na edição brasileira, Letra Selvagem, 2011, nomeado finalista do Prémio Telecom para o melhor livro publicado no Brasil em língua portuguesa; Para que servem os elevadores e outras indagações literárias, ensaio, Alcance Editores, Maputo, 2012; Respiro, ensaio poético, Língua Morta, 2011; O branco das sombras chinesas, novela policial, com João Paulo Cotrim, Abysmo, 2011, Não se emenda a chuva, poesia, Livros de Horas, 2011; Fábulas, adaptação de estórias orais de Cabo Delgado, desenhos de Matias Ntundo, Maputo, Kapicua, 2009; Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, contos, Teorema, 2008; O pastor de ventos, ficção juvenil, Trinta por uma linha, 2008; Piripiri Suite, seguido de Vision de l’Amen, poesia, Ver o Verso, 2006; Combate de flautas, poesia, & etc, 2003; Os abysmos da mão, poesia, Íman, 2001; Arte Negra, antologia poética, Fenda, 2000; e de Oitenta Flechas para Atrair a Cotovia I, Douda Correria, Maio, 2018.

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