A Nossa Morte – Sean Bonney

2 | Da Escuridão Profunda


O disco violento no centro do céu e as moedas no meu bolso irradiam a mesma energia infernal. Sei-o porque há cinco dias que não durmo. E sei que não durmo há cinco dias porque quando fui à minha varanda hoje de manhã todos os edifícios da cidade se desmoronaram. Isto pareceu-me motivo para alguma preocupação, pelo que me sentei a escrever o meu testamento. Aqui vai ele. As minhas chávenas de café e máquina de escrever deixo, sei lá, a quem berrar mais alto. A minha colecção de garrafas de cerveja vazias deixo ao meu senhorio. A minha biblioteca deixo aos sem-abrigo de Kottbusser Tor. O meu cartão de crédito também. A minha incerteza sexual fica comigo. O meu amor deixo aos suicidados. O meu vício deixo aos bófias, eles que mirrem, se transfigurem, morram. O meu ódio guardo junto ao coração. O meu coração deixo ao centro da Terra. O meu desgosto. Bah. O meu desgosto, que tem o tamanho da minúscula ilha racista em que nasci, comprimo-o, transmuto-o em algo como o júbilo feroz e colectivamente inumano dos andorinhões que rondam a cidade num frenesi mais selvagem do que. Sei lá, tanto faz. O coração é uma metáfora tão foleira. E é tão patética a ideia de o enterrar na Terra, quando podia muito bem dispará-lo até ao centro da mancha vermelha de Júpiter. Por exemplo. O meu sistema sensorial. Por exemplo. Os meus cinco sentidos deixo às luas invisíveis de Plutão, como um aglomerado de estrelas estouradas, eclipsadas, como os andorinhões da cidade que tremeluzem ora dentro ora fora do tempo do calendário, onde as chávenas de café e máquinas de escrever e hábitos e tudo o resto se convertem num disco bruto de nós e tumores encarcerados num algures muito para lá do mundo conhecido, porque é óbvio que depois de cinco dias sem dormir o teu coração começa a produzir ritmos incognoscíveis, enigmáticos, e as tuas ligações à Terra e aos seus cinco sentidos tornam-se cada vez mais ténues e é aí que me ponho a pensar no ensaio de Will Alexander, “A Note on the Ghost Dimension”, não sei se leste, onde a certa altura ele fala dos cinco dias em falta no calendário Maia, que aparentemente assinalam o tempo em que os monstros e os venenos hão de surgir, e eu não sei grande coisa sobre o calendário Maia, mas ao fim de cinco dias sem dormir sei tanto sobre monstros e venenos, e tanto sobre como os cinco dias em falta podem ser lidos enquanto expressão do destino dos cinco sentidos, e como esses cinco sentidos em falta foram capturados e aprisionados sem pedido de resgate numa qualquer ilha irrelevante enterrada bem fundo, no centro de um sistema astrológico capitalista. A minha minúscula ilha racista deixo aos monstros e venenos. A dimensão fantasmática deixo aos meus amigos mais queridos. Os meus nós e tumores deixo aos que se aprontam a formar um novo governo, para que saibam quão minúsculo, quão assanhado e perdido se pode tornar um sistema sensorial sequestrado. Ah, que se foda. Deixo a expressão que tenho na cara aos meus inimigos. Deixo a mancha vermelha de Júpiter aos desempregados, estou certo de que saberão o que fazer dela. O meu coração, raio que o parta. Resistir à morte pela água. E pelo fogo e pela corda também. Nada me amedronta. Amo-vos tanto, a todos, foda-se.

Douda Correria#125

A Nossa Morte – Sean Bonney

(tradução de Miguel Cardoso/ capa e ilustrações de Tiago Cutileiro/ composição por Joana Pires)

IMPRENSA/ BLOG´S

Revista Escamandro | Sean Bonney, por Beatriz Bastos & Otávio Campos` | 26.06.2020

https://escamandro.com/2020/06/26/sean-bonney-por-beatriz-bastos-otavio-campos/

Blog Antologia do Esquecimento | por Henrique Manuel Bento Fialho | 11.09.2020

https://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2020/09/a-nossa-morte.html

LEITURAS

Douda Shuffle#141/ Poesia Incompleta

Por Nuno Moura e Madalena Ávila.

15 JUL 2021/ Livraria Poesia Incompleta

https://www.facebook.com/doudascorrerias/videos/556708666614392

Sean Bonney/ Douda Correria

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Sean Bonney

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